Tive a sorte de entrar, uma vez apenas, num cartório notarial, num dos poucos dias normais: Não havia greve e era, descaradamente, o meio da semana, exactamente aquele ponto que faz com que alguns funcionários, pudicos, deixem de pensar nas desventuras do fim-de-semana anterior e comecem a preparar, ociosamente, a letargia do fim-de-semana seguinte.
Entrei conduzido pela temperatura de um ar condicionado que ali fora colocado, propositadamente, pela mão de algum deus para arrefecer possíveis ânimos exaltados. Abeirei-me do balcão com a mesma submissão de quem pede uma esmola e, talvez por isso, tenha passado despercebido. A sala era composta por uma dezena de secretárias suportando cada uma delas um computador, uma ridícula máquina de calcular, e todo o material necessário às conhecidas tarefas do faz e desfaz: Agrafador, desagrafador, furador, corrector. Estavam três carcaças e um aprendiz de carcaça entretidos a olhar para os computadores comprados, desgarrada, despropositada e descaradamente, com o dinheiro do Zé Parvinho. Eu estava ali, qual moscardo, gerando o caos na harmonia daquele ambiente, a assistir com surpresa àquele jogo de olhares, uma espécie de atira à sorte mas ao contrário. Telepaticamente os funcionários dialogavam entre si sobre de quem seria a vez de levantar o traseiro, nascido para ficar quadrado, de umas cadeiras que mais pareciam sofás de discoteca. Entendiam-se perfeitamente, notava-se-lhes no respirar. Não era mímica pois essa até eu a reconheceria. Era qualquer coisa de sofisticado, qualquer coisa a rimar com a apatia característica daquela sala, qualquer coisa tipo telepatia! Só não recorriam, para apontar as tarefas do atendimento, ao automatismo facilitado pelas folhas de cálculo, porque, sem conhecimento de causa o afirmo, eram incapazes de tal construção.
Eu, um eu desgraçado, um eu do lado de cá do balcão, começava a entrar naquele ponto em que apetece partir tudo o que nos aparece à frente.
Bufei, esperneei, desesperei, mas nada disse.
Dos quatro funcionários tinha logo que me sair a dos óculos mais grossos! Uns óculos tipo fundo de garrafa. Penso que o grupinho montou uma armadilha para me cortar as hipóteses de reacção: Bater numa mulher é crime. Bater numa mulher de óculos é genocídio!
“Quer alguma coisa?” – Apeteceu-me dizer que estava ali por causa do ar condicionado. “O ar condicionado, sabe?... Tão bem que sabe!” - Apeteceu-me dizer mas não disse, não fosse embaciar os óculos do meu interlocutor. Tenho a certeza que se lhe pedisse uma cervejinha ela iniciaria naturalmente o movimento para um frigorífico escondido algures. Também não o fiz. Pedi uma certidão fresquinha como o ar condicionado. Não pedi rapidinha para não ser mal interpretado. Paguei e saí, como bom português, com um sentimento de que me tinham feito um grande favor.